TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

As chancas de Alphonsus



                                       
J. FLÁVIO VIEIRA

                                               Alphonsus Publius Catarinus Maximus !  Esse nome, carregado de um latinório trava-línguas, poderia fazer parte da Mitologia Romana. Como diabos teria aterrissado em Matozinho ? Primeiro, é importante lembrar que o nosso Alphonsus  não trouxe esse epíteto da pia batismal. Nascera, sem sangue azul, molhando fraldas esfarrapadas, como muitos dos seus conterrâneos. Ainda adolescente,  enfurnara-se num Seminário, na capital,  e por muito pouco escapou da ordenação. Fora aluno exemplar e seus superiores vaticinavam-lhe uma brilhante carreira religiosa, coisa para arcebispo ou cardeal. Apaixonou-se, no entanto,  por um rabo de saia , filha de uma das copeiras do Seminário , e ela terminou arrancando-lhe a batina e  ele, em compensação, assungou-lhe  a saia . Partiu, então, nosso Catarinus para a dura vida de chefe de família, como comerciário. Nunca, no entanto, abandonou aquela mania de  sacristia, falava  apenas em latim vulgar e irritava-se por não ter interlocutores fora das hostes sacerdotais. Foi aí que resolveu, num penoso processo, mudar, em cartório,  o nome de matuto, Afonso Possidônio , de Catarina ( sua mãe) ,  para o pomposo : Alphonsus Publius Catarinus Maximus. E foi de posse desse novo registro civil que um dia aportou em Matozinho, carregando já uma récua de filhos. Com o dinheiro juntado, por muitos anos, estabeleceu-se por lá com um pequeno Armarinho e, já madurão, mudou-se para uma fazendola que adquiriu  e renomeou-a  de “Parnaso”.
                                   Em Matozinho,  teve que abandonar o latinório,  pois ninguém ali estava à altura da sua  sapiência lingüística. No Seminário versara-se em autores clássicos portugueses como Herculano e Castilho e sabia todo o “Eu” do nosso Augusto dos Anjos de cor. Negava-se, assim, terminantemente,  a falar em linguajar reles, fugia dos galicismos e anglicismos como o capeta de água benta. Erros de português, se legislasse, seriam punidos com prisão perpétua, salvo os de concordância verbal onde deveria se aplicar, sem remorso,  a pena capital. Publius mostrava-se, ainda, totalmente a favor da redução da maioridade penal: a partir de 12 anos, se desferir golpe de morte no vernáculo: galés perpétuas ! Ademais , nada de se resumir a uma centena de verbetes apenas, num idioma tão rico como o português:
                                   -- O  ” Caldas  Aulete” tem trezentos mil verbetes é pra se usar ! --- Costumava dizer  Catarinus .
                                   Até na emissão quase que automática de palavrões , nosso  vernaculista se policiava. “Filho da Puta” , virava  “Rebento de uma deusa de lupanar” ; “Maricas” , dizia “Pederasta sub-reperício “; “Vá para PQP !”  tornava-se nos lábios de Catarinus : “Diriga-se à Messalina que vos concebeu!” . Personagens famosos de Matozinho, também, ganharam denominações menos rasteiras : “Jojó Fubuia” terminou rebatizado por Johann Etanol; Janjão da Botica transformou-se em Jonh Pseudo- Esculápio.
                                   Dias atrás correu por toda Matozinho o ocorrido na Barbearia de Barba de Gato. Alphonsus lá chegou tentando encomendar um corte de cabelo. Dirigiu-se para nosso barbeiro, semi-analfabeto, com o seguinte palavreado :
                                   --- Ó Fígaro ! Quanto queres de remuneração pecuniária para desbastar estas excrescências córneas que se avolumam por sobre minha calota craniana ?
                                   Barba de Gato, mais perdido que cachorro em noite de São João, diante de tamanha catilinária, interrogou-o:
                                   --- Kumas ? Oxente , O homem  endoidou ou veio das estranjas !
                                   Contrariado, Alphonsus, raivoso, ameaçou :
                                   --- Se dizes por insipiência, perdoar-to-ei ! Se,  no entanto,  pretendes zombar da minha alta prosopopéia, desferir-te-ei um golpe com  este instrumento perfuro-contuso que o vulgo o denomina “bengala” , no frontispício da tua caixa craniana,  com tamanha impetuosidade, que ela  há de metamoforsear-se , em iníquos instantes, em meras cinzas cadavéricas !
                                   Registra ainda o folclore de Matozinho  uma outra epopéia  do nosso vernaculista. Pela manhã , ele despertou o filho caçula ,Dioclecianus Tertius, pedindo-o para ir até ao mercado público a fim de comprar uns cuscuzes  para o café da manhã. Convocou-o com este petardo:
                                   -- Tertius, prólio meu ! Levanta-te deste leito adormecente e caminha até àquele aglomerado humano que o povo denomina de mercado e compra-me massas côncavas a que o vulgo rotula de cuscuz, para que possamos saborear no nosso jantar matinal !
                                   Semana passada, a praça da matriz parou diante de uma cena inusitada. Alphonsus  buscou um engraxate, no intuito dar um trato nos seus pisantes. O problema é  que se tratava de uma figura popularíssima em Matozinho e que carregava um apelido  hilário : “Cu de Apito” . Imaginaram todos a dificuldade que teria nosso emérito vernaculista em tipificar o engraxate de forma mais erudita. Em alto e bom som, Publius aproximou-se  e , com sua inconfundível voz tonitruante, encomendou o serviço:
                                    --- Insigne polidor de pantufas ! Poderias genufletir-te ante mim e tornar luzidias estas minhas pré-históricas chancas !  Vinde,  ó Óstio anal chilreador !

Crato, 21/02/14

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