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terça-feira, 26 de outubro de 2010

Theotonio dos Santos resgata a alma de Fernando Henrique Cardoso - José do Vale Pinheiro Feitosa

A publicação de uma carta resposta de Theotonio dos Santos a Fernando Henrique Cardoso em razão da enviada por ele ao Presidente Lula, publicada no dia de ontem, deve bater no coração de alguns como mera diatribe eleitoral. Mas não é. Esta carta reflete a discussão central na América Latina desde os anos 60 e explica bem os motivos pelos quais a região desde esta época esteve sempre em pólos de tomada de rumos diferentes.

Quando Fernando Henrique, em má hora, mandou que esquecessem o que escrevera, mais do que um desvio pela direita, ela dava um vigoroso abraço no vazio de sua alma. Theotonio dos Santos veio salvar a alma de FHC muitos anos depois e muitos acharão que apenas esfarrapou a toga do sábio. Theotonio, num ato de bondade, contra todas as evidências, recolocou FHC no patamar intelectual que é o único patrimônio dele. O patrimônio da Teoria da Dependência do qual FHC era a ala direita e Theotonio, com Ruy Mauro Marini e Vânia Bambirra eram a esquerda.

Aliás, é bom que estudiosos do nosso Ceará visitem a obra de Ruy Mauro Marini, fácil de encontrar inclusive na internet, a maioria das quais publicadas no estrangeiro. Ruy era mineiro de Barbacena e passou a maior parte de sua vida no exterior, retornou ao Brasil após a anistia, pois fora exilado após tortura feroz no CENIMAR. É dele o cabedal da Teoria e junto com Theotonio e Vânia, as bases metodológicas para sua construção.

A teoria foi a primeira visão do subdesenvolvimento da América Latina feita por intelectuais do continente. A maioria tentava explicá-lo nos moldes que nos acostumamos e foi tão bem traduzido como complexo de vira-lata. Eles não ficaram olhando para a quantidade de melanina na pele das pessoas para explicar a miséria, culpando os portugueses e espanhóis por nos formarem ao invés de Ingleses e Holandeses. Aliás, um pensamento tão desprovido de sentido que apenas explicava o próprio subdesenvolvimento dele.

Para Ruy, Theotonio e Vânia havia uma divisão internacional do trabalho, uma relação do capitalismo mundial que criara uma dependência entre países centrais (América do Norte, Europa Ocidental e Japão) e países periféricos (América Latina, África e Ásia). Ao invés de se explicar pela condição agrário-exportadora era a dependência desta divisão que explicaria por que a burguesia nacional dos países periféricos mesmo dona de uma indústria poderosa, era sócia minoritária do capital multinacional, transferindo a mais-valia que tirava do trabalho aqui para o exterior.

Resultado, eles tinham que extrair mais valia do trabalho (superexploração do trabalho) do que fazia o capitalismo central. Agora com os EUA se vê que inclusive a riqueza na mão do trabalho explica a pujança das economias centrais. Os trabalhadores ao se tornarem consumidores no mercado, remuneram o capital. Aqui nos tristes trópicos nem isso era possível. Então a dependência era a causa do subdesenvolvimento e não os nossos pecados originais.

A teoria da dependência é discutida na CEPAL e entre os exilados latino-americanos no Chile. Neste momento cria-se um subgrupo discordante da teoria da dependência com Fernando Henrique Cardoso, Enzo Faletto e mais pontualmente José Serra. Para estes autores a crise de industrialização da região era do projeto do capitalismo nacional pautado na substituição de importações e sob a coordenação do Estado Nacional. O modo de resolver isso era aceitar a penetração do capital estrangeiro trazendo poupança, moeda mundial para superar a escassez nacional de divisas e tecnologia. Haveria crescimento econômico, melhoria da renda, dos padrões da população em seu conjunto e as desigualdades se reduziriam com políticas sociais impulsionadas por regimes democráticos. Reconhecem o governo FHC I e II? Isso estava pensado antes.

A diferença básica entre o grupo de FHC e o do Mauro é a mesma em debate nestas eleições. É a prova que os escritos de FHC não podem ser esquecidos. O grupo de Mauro não tem fé nesta racionalidade, ele observa a realidade e constata que o capital que aqui chega não representa uma poupança externa que se integra á economia local, ele tem a vocação dos drenos que carreiam todos líquidos por gravidade. Apenas vêm aqui para buscar lucros e excedentes a os carrear para seus centros de acumulação, fora da região.

Isso resulta numa sangria que não permite progresso às sociedades locais. Agora mesmo nesta crise cambial isso fica muito evidente. O déficit deste ano se deve especialmente à remuneração das multinacionais aos seus centros de direção. Quando lemos alguém falando em excesso de gastos, em flexibilização do trabalho, em “custo Brasil”, estamos escutando a voz da teoria da dependência segundo FHC e que traduz por dinâmicas muito claras em Ruy: redução salarial, aumento da jornada ou da intensidade de trabalho, sem a elevação salarial correspondente ao maior desgaste da força de trabalho.

A disputa eleitoral é esta mesma e o ideólogo de um dos lados é FHC que atacou fortemente as teses da Dialética da Dependência no CEBRAP. Marini responde com o livro As Razões do Neodesenvolvimentismo em 1978 denunciando os rumos conservadores de FHC quase vinte anos antes dele ser presidente da República no calor de um programa Neoliberal e com o objetivo de acabar a Era Vargas. Enquanto FHC ossificou seu pensamento Ruy Mauro Marini evoluiu e analisou muito bem a nova divisão do trabalho construída nos anos 70/80.

Em Processo e Tendências da Globalização Capitalista, começa a observar que o modelo do pós-guerra esgotou-se e que o capitalismo central começara a superexploração do trabalho também em seus territórios. O mecanismo acontecia por intermédio das multinacionais do seguinte modo: elevação da tecnologia de suas unidades produtivas nos países dependentes subordinadas às inovações geradas nas matrizes. Isso resulta numa estratégia global combinando tecnologia de ponta, superexploração do trabalho na periferia e semiperiferia para quebrar as burguesias estritamente nacionais dos países centrais levando ao rebaixamento do preço da força de trabalho, também nos países centrais.

Vejam como este modelo explica muito bem o papel que tem a China e muitos países asiáticos nisso tudo. Além, é claro da América Latina e África. Por isso é que os trabalhadores franceses estão em levante, é reflexo desta estratégia. Outro dia escrevi aqui nestes blogs um texto chamado “Olhem eles aí de novo” em que resumia isso aqui, nos EUA e na França.

FHC, que estará á frente de uma passeata do final da campanha de Serra, além de representar um pensamento conservador, também represente uma leitura equivocada do Brasil e isso o Theotonio do Santos demonstra. Mas ao fazer isso, volta a dar conteúdo àquele que nos pedira para esquecer a coisa que torna humano um individuo: seu pensamento.

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