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segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Meu nome é John Ford, eu faço westerns



Mostra reúne a obra do cineasta que recriou o caubói e o faroeste




RESUMO Idiossincrasias, temperamento difícil, economia de meios e aversão a concessões à indústria fizeram de John Ford um nome central no cinema do século 20. Vistos em retrospectiva em São Paulo, Rio e Brasília, seus filmes são um manifesto pela ordem coletiva, negando o tradicional individualismo da figura do caubói. 

PEDRO BUTCHER
ilustração RODRIGO ANDRADE

EM 1961, JOHN FORD recebeu em seu escritório, nos estúdios da Paramount, a visita de um moleque de 15 anos que sonhava em ser cineasta. O diretor estava com 67 anos e preparava aquele que seria um de seus melhores filmes, "O Homem que Matou o Facínora". A secretária avisou: "Ele vai recebê-lo, mas só por um minuto". 
O adolescente entrou na sala, decorada com pinturas que representavam o Velho Oeste.
"Então você quer fazer filmes?", perguntou Ford.
"Sim, senhor. Quero ser diretor de cinema."
"Certo. Está vendo essas pinturas? Observe a primeira e me diga o que vê."
"Vejo um índio e um cavalo."
"Não, não, não. Cadê o horizonte? Você é capaz de me dizer onde está o horizonte?"
O moleque apontou. 
"Não aponte", disse Ford. "Olhe para a pintura como um todo e me diga onde está o horizonte."
"Embaixo."
"Bom. Agora observe a próxima. Cadê o horizonte?"
"Em cima."
"Ok. Agora vem cá: quando você chegar à conclusão de que pôr o horizonte na parte inferior ou na parte superior pode ser melhor do que no meio do quadro, então talvez, algum dia, você possa se tornar um bom diretor."

MITOLOGIA Quem conta a história, anos depois, é o próprio moleque, chamado Steven Spielberg, no documentário "Directed by John Ford", de Peter Bogdanovich, combinação de reflexão crítica sobre os filmes de Ford e muitos casos narrados por atores e colaboradores do diretor de "Rastros de Ódio". As boas histórias são muitas, pois, em torno de seu temperamento difícil, criou-se uma mitologia tão forte quanto sua obra. 
O relato de Spielberg, contudo, vai além da anedota, pois toca num ponto fundamental: o gênio artístico do cineasta e seu apurado senso estético. 
Não que Ford (1894-1973) tenha sido injustiçado. Ao contrário de Orson Welles e Alfred Hitchcock, que jamais ganharam o Oscar de melhor diretor, Ford levou quatro (até hoje é o recordista na categoria, com "O Delator", de 1935; "As Vinhas da Ira", de 1940; "Como Era Verde Meu Vale", de 1941; e "Depois do Vendaval", de 1952). Durante boa parte de sua vasta carreira, que durou de 1917 a 1970, foi reconhecido como o maior cineasta americano. 
Na avaliação do crítico americano Tag Gallagher, porém, tal reconhecimento, mesmo quando cravado de elogios, se deu por linhas tortas. "Nos filmes de Ford, a eloquência de suas composições tornava o diálogo virtualmente desnecessário, não por falta de riqueza do roteiro, mas porque a estrutura literária era apenas um aspecto da complexa inteligência formal de seu cinema", escreve ele na monumental biografia "John Ford - The Man and His Films", que o próprio autor disponibilizou na internet, em home.sprynet.com/~tag/tag/. "É essa imensa inteligência que muitos críticos ignoraram." 

SUTILEZAS "Os apologistas de Ford louvam seus instintos e emoções como se ele fosse artista inconscientemente, sem intenção", prossegue Gallagher. "Seus detratores depreciam seu sentimentalismo, o tacham de racista, militarista e reacionário, ignorando as sutilezas entre os extremos, os discursos de níveis duplos, o apelo obsessivo de sua obra pela tolerância."
Gallagher reconhece que parte da culpa por essa incompreensão vem do próprio Ford, "que se escondia sob máscaras". A atitude seca e até agressiva, repudiando o rótulo de "artista", foi uma estratégia de sobrevivência na máquina trituradora de Hollywood, que acabou moldando a figura pública de Ford e, aos poucos, ganhou contornos folclóricos. 
Nos trechos de uma entrevista reproduzida no documentário, Bogdanovich aproveita essa faceta para extrair momentos verdadeiramente cômicos: 

Bogdanovich - (fora de quadro): "O senhor fez 'Three Bad Men' (1926), um 'western' de grande escala, com uma sequência elaborada da chegada dos colonos. Como o senhor a filmou?"
Ford- "Com uma câmera".

Sua visão do Oeste tem se tornado progressivamente triste e melancólica ao longo dos anos. O senhor se deu conta dessa mudança?
Não sei do que está falando.

Que elemento particular do Oeste o atraiu desde o começo de sua carreira?
Não saberia dizer. 

O senhor concordaria que em "Sangue de Herói" (1948) a tradição do Exército tem mais importância que o indivíduo?
Corta!

ESTETA Tal atitude não diminui as qualidades de Ford como esteta. Trabalhando no coração da indústria, quase sempre sem assinar os roteiros e a montagem final de seus filmes, Ford construiu uma obra absolutamente pessoal e singular. Poucos foram tão perfeitos ao combinar conteúdo e forma. 
"Ford foi um dos mestres da unidade orgânica, princípio em que os elementos estéticos da linguagem cinematográfica se encontram em diálogo uns com os outros", diz João Luiz Vieira, professor na Universidade Federal Fluminense. "É importante perceber como determinado enquadramento, com sua composição, iluminação, distância entre a câmera e o assunto, angulação e mobilidade, constrói sentidos em conjunto com a movimentação e expressão dos atores, figurino, cenografia (natural ou em estúdio) etc.".
Após um mergulho na obra de Ford, o cineasta Bertrand Tavernier escreveu o texto "La Chevauchée de Sganarelle" [A Cavalgada de Sganarelle], publicado na revista "Présence du Cinéma" em 1965 e disponível em francês na internet. "As grandes retrospectivas organizadas pela Cinemateca Francesa são duras provas para os cineastas", diz, citando os filmes de Vincente Minnelli e George Cukor como exemplos dos que não sobrevivem tão bem quando vistos em conjunto. 

OPORTUNIDADE Este, contudo, não seria o caso de Ford -e o ilustríssimo espectador brasileiro pode tirar a prova na retrospectiva dedicada ao cineasta que está em cartaz no CCBB de São Paulo até 17 de outubro e depois segue para Brasília (28/9 a 17/10) e Rio de Janeiro (12/10 a 7/11). É uma oportunidade raríssima: são 36 filmes, todos em película, e mais o fundamental documentário de Peter Bogdanovich ("Directed by John Ford", 1971/2006). 
O catálogo da mostra traz 18 textos essenciais sobre Ford, quase todos inéditos no Brasil (três assinados por Tag Gallagher, e análises de Serge Daney, João Bénard da Costa, Jacques Rancière, Andrew Sarris, Jean Mitry, Lindsay Anderson. Há também um curso, dividido em quatro módulos, ministrado por Ismail Xavier, da USP, e João Luiz Vieira, entre outros.
Tavernier, em seu texto, aponta com precisão os elementos que costuram os filmes e tornam a obra de John Ford grandiosa, sem fazer vista grossa a seus numerosos erros -entre os quais inclui o consagrado "O Delator", que lhe rendeu o primeiro Oscar- e apontando a dificuldade interna criada pelas próprias mutações ao longo da carreira ("nosso homem é um dos mais rebeldes às exegeses"). 

VIAGENS E PEREGRINAÇÕES Enquanto o "western" clássico apresenta uma visão individualista do mundo, marcada por uma forte ideia de violência física ou interior ("um caubói e seu desejo de vingança; um fora da lei que tenta escapar de seu passado; um atirador e sua vontade de matar"), em Ford "a linha de força raramente é constituída em torno de um sentimento individual ou de um motivador negativo, destruidor", diz Tavernier. As viagens e peregrinações predominam. 
"Os filmes são odisseias de caravanas de emigrantes, patrulhas de um grupo de cavaleiros, travessias do deserto por uma diligência, ou bandidos procurados pela polícia. Ford só se interessa por problemas pessoais na medida em que se interceptam aos da comunidade. Seus heróis só reagem em função do meio em que vivem e não impõem questões morais. Sua ética só existe em relação a um sentimento de ordem coletivo."
"Nos filmes de Ford, são evidentes os conflitos entre o indivíduo e a civilização", afirma Gallagher num brilhante ensaio visual produzido para a edição especial em DVD de "No Tempo das Diligências" ("Stagecoach", 1939), da coleção Criterion. "Enquanto em tantos outros cineastas os personagens são desprovidos de qualquer coisa que os pré-defina, em Ford os personagens vivem e respiram sua cultura, suas religiões, raças, classes." Em seus filmes, o quadro está sempre carregado de detalhes riquíssimos. Cada personagem tem um passado.

LOCAÇÃO Ford foi um pioneiro nas filmagens em locação. São famosos seus planos abertos, mostrando homens a cavalo em pequena escala, cujo movimento forma linhas diagonais ou espirais no interior de uma vasta paisagem. Em "No Tempo das Diligências", ele filmou pela primeira vez na belíssima região de Monument Valley, na fronteira dos Estados de Arizona e Utah, paisagem que virou marca registrada de seus filmes. 
"Legião Invencível" ("She Wore a Yellow Ribbon", 1949), segunda parte da "trilogia da cavalaria", também traz um momento visual marcante: comandada por John Wayne, a cavalaria segue pela paisagem desértica enquanto uma tempestade de raios avança por trás. Consta que Ford ordenou prosseguir com as filmagens mesmo após o início da tempestade, contra a vontade do fotógrafo e de parte do elenco.
Por causa desta e de outras imagens, estabeleceu-se mais um mito em torno do cineasta: a famosa "Ford's luck", a "sorte de Ford", embora a atriz Maureen O'Hara diminua sua importância ao revelar que o lindo efeito do véu que voa ao vento na cena do casamento de "Como Era Verde Meu Vale" ("How Green Was My Valley", 1941) é obra de três ventiladores. 
Numa complexa sequência que só corrobora seu senso de composição, vemos a noiva e o noivo saírem da igreja em direção à carruagem. A beleza da cena não põe a perder o senso de sutileza: a alegria da festa contrasta com a melancolia da noiva, apaixonada por outro homem (o pastor da cidade). Ela só aceitou se casar com o filho do dono da mina de carvão onde trabalham o pai e os irmãos por força das convenções sociais. 
A sequência termina com a imagem do pastor no alto de uma colina, observando a partida dos noivos ao longe. Robert Parrish, assistente de Ford no filme, conta que, logo depois de rodar o plano, perguntou se o diretor não faria um close do personagem -a escolha mais óbvia para os padrões da narrativa clássica americana. Ford reagiu com repúdio: 
"Não, de jeito nenhum, eles podem acabar usando!" 
"Eles" eram os produtores. 

NA CABEÇA Assim era Ford: filmava só o necessário para a compreensão da cena -nem mais, nem menos (algo particularmente exemplar na era digital, em que se filma absolutamente tudo, o que gerou até um protesto de Fernando Meirelles). Tal método é ainda mais impressionante quando se conhece a aversão de Ford a storyboards, ou seja, o planejamento visual do filme em desenhos semelhantes a histórias em quadrinhos, método que Hitchcock, por exemplo, adorava. 
A economia de planos era, sobretudo, uma forma de contornar a interferência dos estúdios. "Se você filmar muito, o 'comitê' assume o comando. Eles começam a tirar cenas, acrescentar outras, misturar as coisas. Isso eles não conseguem fazer com meus filmes. Corto na câmera e é isso aí. Não sobra muito material no chão quando termino um trabalho."
Sua repulsa aos executivos de Hollywood, aliás, é tema de várias histórias clássicas envolvendo Ford. Consta que ele teria contratado seguranças para manter longe dos sets o poderoso Darryl F. Zanuck, executivo da Fox conhecido por suas intervenções nos filmes. Em outra ocasião, reuniu a equipe em torno de um executivo infiltrado e disse em alto e bom som: "Este é um produtor associado. Podem dar uma boa olhada nele, porque daqui para a frente vocês não vão vê-lo de novo".
Reunir a equipe para constranger os atores era um dos esportes favoritos do cineasta, que preferia trabalhar sob tensão. John Wayne, por incrível que pareça, foi um alvo favorito de suas chacotas. 
A personalidade difícil e exigente, no entanto, não impediu que muitos atores reconhecessem que seus melhores desempenhos foram alcançados sob a direção de Ford. A "trupe" do cineasta entendia que, sob a carapaça da dureza, havia enorme sensibilidade. 

ÉTICA No mesmo ensaio visual sobre "No Tempo das Diligências", Tag Gallagher analisa uma sequência aparentemente simples, mas exemplar da ética rigorosa de Ford (sempre traduzida em estética, ou seja, escolhas de enquadramentos e posicionamento de câmera). "No Tempo das Diligências" conta a história de um grupo heterogêneo que atravessa o deserto na mesma diligência. Entre eles está Dallas (Claire Trevor), prostituta expulsa da cidade em que vivia, e Lucy (Louise Platt), que viaja grávida para reencontrar o marido. 
Em uma pausa na viagem, Ringo, o personagem de John Wayne, convida Dallas para sentar-se à mesa de jantar, o que choca a todos e deixa Lucy especialmente incomodada. O espectador entende tudo o que se passa apenas pela troca de olhares. Gallagher cita um texto do crítico Nick Browne que acusa Ford de ter feito uma cena moralista. Logo em seguida, destrói essa versão: analisando a cena plano a plano, demonstra como, pelo posicionamento da câmera e pela escolha da ordem das imagens, Ford evita julgar os personagens. 
Depois de mostrar o olhar reprovador de Lucy do ponto de vista de Dallas, o cineasta não corta para o que seria a continuação mais óbvia da cena: o ponto de vista de Lucy. Prefere situar a câmera do outro lado da mesa. É uma estratégia, na verdade, simples: nunca mostrar dois pontos de vistas seguidos: "Ford não quer submeter o espectador à manipulação da câmera. O que ele busca é uma empatia à distância". As conclusões se dão na cabeça de cada um. 

MURNAU No fundo, John Ford era um romântico. Filho de irlandeses, carregava consigo um fascínio pelo país natal e horror às histórias de injustiça e pobreza que marcaram a infância dos pais. Um de seus filmes favoritos era uma história de amor: "Aurora" (1927), de F.W. Murnau. 
Para cada história em torno da dureza de Ford há também uma história de ternura e de justiça. Quando Hollywood viveu a sombra do macarthismo e os setores conservadores da indústria promoveram uma intensa perseguição aos profissionais suspeitos de serem filiados ao Partido Comunista, Cecil B. De Mille, um dos diretores mais influentes da época, liderou um movimento para que Sindicato dos Diretores destituísse Joseph L. Mankiewicz, seu presidente. 
Numa reunião do sindicato, Ford fez um pronunciamento célebre: "Meu nome é John Ford. Eu faço 'westerns'. Não acredito que exista alguém nessa sala que saiba mais o que o público americano quer ver do que Cecil B. De Mille. Mas eu não gosto do senhor, não gosto do que você representa nem do que o senhor tem dito aqui, nesta noite".
A mais bela das histórias românticas envolvendo Ford encerra o documentário de Peter Bogdanovich e revela sua paixão por Katharine Hepburn, com quem o cineasta teria tido um breve caso depois de "Maria Stuart" ("Mary of Scotland", 1936). 
Já doente e perto de morrer, Ford recebeu a visita de Katharine. Quando os dois ficam sozinhos no quarto dele, Ford diz: "Eu te amo" - e ela responde: "Eu sei". 
Peter Bogdanovich sugere que a sucessão de obras-primas de Ford entre 1939 e 1941 ("No Tempo das Diligências", "A Mocidade de Lincoln", "As Vinhas da Ira" e "Como Era Verde Meu Vale") teria sido feita sob o feitiço dessa paixão. Os brutos, afinal, também amam. 

"Trabalhando no coração da indústria, quase sempre sem assinar os roteiros e a montagem final de seus filmes, Ford construiu uma obra absolutamente pessoal e singular. Poucos foram tão perfeitos ao combinar conteúdo e forma"

'A economia de planos era, sobretudo, uma forma de contornar a interferência dos estúdios. "Se você filmar muito, o 'comitê' assume o comando. Eles começam a tirar cenas, acrescentar outras, misturar as coisas. Isso eles não conseguem fazer com meus filmes. Corto na câmera e é isso aí"'

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