TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

domingo, 22 de novembro de 2009


OS CÃES DE CAIM


A raça humana não existe mais. Foi extinta ante o tinto da tinta, bem muito às quantas. Que se dane a compaixão. Que seja travestida de miséria quântica a última misericórdia. Sem cordialidades: deus foi rebaixado de posto, o diabo foi remarcado em promoção de camelô, o mito foi des-crito no fel da infidelidade e o homem foi mentecaptado, jogado em catapulta literária para o mais puro em finito. Tudo isso você pode encontrar no último Saramago, Caim, um livro que se apropria de tudo aquilo que é proscrito.

Diz a imprensa - que quase sempre é imprensada pelo empreendimento e quase sempre muito bem embalada para presente, sem nenhum futuro – que o autor português começou a planejar o seu novo livro há muito tempo atrás, mas só em dezembro de 2008 começou a escrever, e que ainda em quatro meses deu por terminado. Em verdade, segundo Saramago, foi um transe experimentado inusitadamente. De fato não importa o tempo. O livro foi publicado e com ele vieram o deleite e as velhas polêmicas geradas desde o seu grandioso O Evangelho Segundo Jesus Cristo, um dos maiores exercícios literários de todos os tempos.

Caim fortalece o legado irônico de Saramago e a sua técnica invejável de contador de histórias. Seus truques são manjados. O que faz dele o maior escritor vivo é exatamente a habilidade que ele tem em encantar com as mesmas ferramentas. Os parágrafos imensamente imensos; a pontuação desalojada; a metalinguagem refinada; a polifonia intricada; a diegese descomunal; os arabescos neo-barrocos; o dialogismo despido do utilitarismo vigente na literatura de mercado; o fantástico; a suprema ironia e o profundo desdém pelo convencionalismo da ética humana; além de outros pormenores; estão todos lá, como jóias de um tesouro pertencente a um pirata movido pela sagacidade ímpar de sabotar toda a dissimulação da humanidade.

Em Caim existe um vórtice que aniquila o tempo e o espaço, um velho sonho do homem. Caim é levado a percorrer vários caminhos míticos do velho testamento, sem cronologia e sem geografia estabelecidas dentro de uma linearidade. A trajetória de Caim é a própria trajetória da dessacralização de todos esses mitos elencados no enredo de Saramago. Da mesma forma em que o narrador do incomparável O Evangelho Segundo Jesus Cristo faz questão de se distanciar do tempo mitológico, citando referenciais da realidade contemporânea, através de um cinismo singular, o narrador de Caim também o faz, como na passagem em que ele traça um paralelo entre a destreza náutica da arca de Noé e a lerdeza de vôo do Zeppelin Hindenburg.

Além da destituição da autoridade cosmogônica Saramago se aprofunda ainda mais nas frestas da exegese do Velho Testamento e provoca judeus, católicos e quem quer que seja e que esteja ligado ou religado à legitimação da palavra revelada de qualquer religião. Não há perdão para Saramago, para ele o discurso religioso é uma grande trapaça. Quando ele coloca deus e o diabo com minúsculas, ele não só rebaixa o mito da divindade e da queda, através de uma humanização das duas maiores entidades do eterno maniqueísmo entre o bem e o mal, como também ele rebaixa a própria condição humana ao colocar os dois como sádicos, violentos, sujos e sem escrúpulos, tal qual a escória humana que controla as nações e as corporações. Esse é o grande trunfo lúdico de Saramago: entornar a humanidade e sua história dual de mito e realidade em um só caldo nefasto de decadência absoluta, através de aproximações e distanciamentos, construções e desconstruções. Não é a toa que Caim troca de identidade com Abel. Ora está vivo, ora está morto.

O assassinato de Abel é apenas o ponto de partida para uma série de aniquilamentos. A linguagem literária de Saramago é tão carregada de significados que a própria eloqüência e a grandiosidade que se requer para uma narrativa épica do fim da humanidade para um recomeço promissor, foram categoricamente desconstruídas por pequenas narrativas de coisas pequenas dos personagens em um cotidiano pequeno, que aparentemente não têm razão ou força literária. O próprio assassinato é narrado em duas frases rápidas, sem qualquer espetaculismo. Esse aniquilamento se desdobra em fatos diversos, como o aparecimento de Lilith em mito e em obscenidade, que representa a mulher decaída, mas poderosa em sua capacidade de procriar a decadência e o mal. Essa não é a única amante de Caim, que se deita em lascívia e luxúria com todas as mulheres que cercam Noé, mas acaba assassinando todas, para que a raça humana não deixe vestígios, apenas ele, CaimItálico, a decadência imortal.

É possível perceber a força impiedosa do esvaziamento na narrativa de Caim nesse fragmento tão desconcertante quanto magnético, um diálogo travado entre Deus e Caim, diante de Noé e sua engenhosidade: “(...) Não me disseste que vieste aqui fazer, disse deus, Nada de especial, senhor, aliás não vim, encontrei-me cá., Da mesma maneira que te encontraste em Sodoma ou nas terras de us, E também no monte Sinai, e em Jericó, e na torre de babel, e nas terras de nod, e no sacrifício de Isaac, Tens viajado muito, pelos vistos, Assim é, senhor,mas não que fosse por minha vontade, pergunto-me até se estas constantes mudanças que me têm levado de um presente a outro, ora no passado, ora no futuro, não serão também obra tua, Não, nada tenho que ver com isso, são habilidades primárias que me escapam, truque para épater Le bourgeois, para mim o tempo não existe, Admites então que haja no universo uma outra força, diferente e mais poderosa que a tua, É possível, não tenho por hábito discutir transcendências ociosas (...)”.

Caim é para ser lido sem os olhos do fundamentalismo e sem a estupefação imbecilizada do burguês diante do mito esfacelado em pedaços. Se cabe alguma crença na leitura desse míssil nuclear teleguiado pelos séculos sem fim amém, é justamente a crença suprema no poder infalível da grande arte não resolver absurdamente nada, inclusive o absoluto, com todos os seus disfarces noturnos e diurnos em ser aquilo que é, sem nunca ter sido.

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