TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Vem de longe...

Do ladrão ao barão
Tesoureiro-mor de d. João 6ø, Francisco Targini é um caso exemplar de corrupção e impunidade nas altas esferas da administração pública


Durante o reinado carioca de D. João 6ø, tornou-se popular uma quadrinha que dizia: "Quem furta pouco é ladrão,/ quem furta muito é barão,/ quem mais furta e mais esconde/ passa de barão a visconde". Seu alvo era o tesoureiro-mor do reino, Francisco Bento Maria Targini, visconde de São Lourenço.
Nascido em 1756, em Lisboa, Targini era filho de um italiano e começara a carreira numa casa de comércio como caixeiro, progredindo depois para guarda-livros. Na vida pública, seu primeiro cargo importante foi o de arrecadador de rendas da Província do Ceará.
Nomeado em 1783, lá permaneceu até 1799, segundo Oliveira Lima, malquistando-se com os governadores e ouvidores por seus excessos no combate a práticas administrativas desonestas. Targini veio para o Rio com a corte em 1807.
Ao que parece, sua rápida elevação a homem forte das finanças da época teve o apoio de um poderoso grupo de negociantes ingleses.
Depois de nomeado tesoureiro-mor, ele foi agraciado com o título de barão de São Lourenço, em 1811, e elevado a visconde, em 1819.
Santos Marrocos menciona em suas cartas que, no Rio de Janeiro, circulavam muitos pasquins contra Targini com quadrinhas como esta: "Furta Azevedo no Paço/ Targini rouba no Erário/ E o povo aflito carrega/ Pesada cruz ao Calvário".
Um dos boatos que se contavam dizia respeito à compra de mantas para o Exército que Targini fizera a um fornecedor inglês. O hábil homem público teria mandado dividir cada uma das peça ao meio, revendendo-as depois ao governo pelo dobro do preço original.
Targini também passou à história por ter feito nomear diretor da Academia de Artes, em 1820, após a morte de Lebreton, um medíocre pintor português, Henrique José da Silva, e, como secretário, o padre Luís Rafael Soyé -que, segundo Taunay, era um "velho eclesiástico espanhol, de origem francesa, sem honorabilidade nem compostura, poeta de água doce e parasita do ministro Targini, que se oferecera para trabalhar pela metade do preço".
Também foi nas águas de Targini que se criou um outro parasita, João Rocha Pinto, valido e amigo do peito de d. Pedro 1ø.

Homem rico, erário pobre
Nas cartas ao cunhado e ministro, o conde de Linhares, Palmela, homem da ilustração portuguesa, apontava Targini como o homem mais corrupto da corte de d. João e recomendava sua demissão. José da Silva Lisboa, o visconde de Cairu, em sua "História dos Principais Sucessos Políticos do Brasil", diz que Targini "... fazia ostentação de opulência mui superior ao ordenado do seu emprego".
Hipólito da Costa, no "Correio Braziliense", admirava-se de que Targini, sem outros bens mais que o seu minguado salário, tivesse se tornado um homem riquíssimo, enquanto o erário se achava pobre.
E completava: "Se a habilidade de um indivíduo em aumentar suas riquezas fosse por si só bastante para qualificar alguém a ser administrador das finanças de um reino, sem dúvida Targini, barão do que quer que é que não nos lembra, devia reputar-se um excelente financista".
A edição da "Arte de Furtar" que consta da coleção do Instituto Histórico do Ceará é dedicada a um ex-funcionário da Fazenda no Ceará. Trata-se possivelmente da que foi publicada em Londres, em 1821, por Hipólito da Costa, que, ironicamente, a dedicava ao Visconde S. Lourenço.
A imagem de Targini aparece na página de rosto emoldurada por uma corda, como se fosse uma forca.
Nas agitações que antecederam a partida do rei, em 1821, Targini chegara a ser preso na Ilha das Cobras. Mas, segundo se disse, isso fora apenas para poupá-lo de agressões, tal era a sua impopularidade. Logo foi solto e embarcou rumo a Lisboa.
No "Correio", Hipólito criticaria o fato de o conde dos Arcos, principal ministro do regente, d. Pedro, ter dado por justas e liquidadas as contas do tesoureiro-mor e concedido passaporte para aquele se pôr ao fresco.
Segundo Oliveira Lima, o inquérito contra Targini, conduzido pelo conde dos Arcos, "estabeleceu a integridade do funcionário, a quem foi concedida uma pensão".
Talvez Lima não conhecesse um manuscrito de 17 páginas datado de 1807 e intitulado "Ode ao Conde dos Arcos", que consta do acervo da Biblioteca Nacional e assinado por Francisco Bento Maria Targini.
Segundo Antonio Paim, Targini foi o responsável pela tradução para o português do tratado publicado por Charles Villers, em 1801, "A Filosofia de Kant ou Princípios Fundamentais da Filosofia Transcendental".
Uma das coisas que Oliveira Lima alega em defesa de Targini é o fato de ser homem culto que traduziu o "Ensaio sobre o Homem", de Pope, e "O Paraíso Perdido", de Milton. Esta última foi publicada em Paris, em 1823, com reflexões e notas do tradutor, numa edição muito luxuosa.
De fato, Targini, quando chegou a Lisboa, em 1821, foi impedido de desembarcar, retirando-se para Paris. Ali viveu até morrer em 1827, certamente com tempo e dinheiro para gastar em suas obras de erudição.
Creio que, apesar da defesa de Oliveira Lima, vale o refrão espanhol que Hipólito da Costa usou para ilustrar a situação de Targini: "Quem cabras não tem e cabritos vende, é porque de algum lugar lhe vêm".
Seu enriquecimento no cargo de tesoureiro-mor de um reino tão empobrecido devia ser indício suficiente para condená-lo.
Sua vasta erudição não é atenuante, e sim, agravante.
Os pequenos corruptos, incultos e quase analfabetos, como o barbeiro Plácido e a marquesa de Santos, roubavam no varejo, da despensa do rei e do bolsinho do imperador.
Targini roubava à grande, ostentando seus ganhos e correspondendo fielmente a uma outra versão da quadrinha popular citada no início dessa matéria e que terminava dizendo: "Quem mais rouba e não esconde/ passa de barão a visconde".

ISABEL LUSTOSA é historiadora da Casa de Rui Barbosa (RJ) e autora de "Insultos Impressos" (Companhia das Letras), entre outros livros.

3 comentários:

Armando Rafael disse...

Grande Zé Flávio:
Corrupção existe desde que o mundo é mundo... mas foi muito oportuna a sua postagem da matéria de Isabel Lustosa (ela é irmã do Paulo Lustosa, aquele que dirigiu recentemente a Funasa...lembra-se?) sobre 1 caso de corrupção no Brasil Colônia. Isso nos remete a algumas ilações.A ver:

1º) É preciso diferenciar "Brasil-Colônia" (quando o Brasil era colônia Portugal,de 1500 a 1821) do "Brasil-Império", nação soberana, a partir de 1822.
Os monarquistas brasileiros têm como referencial o BRASIL IMPÉRIO.Creio que você, bem informado como é, sabe disso. Infelizmene muitos quando querem criticar a forma de governo monárquica - desconhecendo essa grande diferença - dizem "no Império também houve casos de corrupção"; "NoImpério roubavam o Pau Brasil,o ouro", etc;

2º)Interessante que mesmo na monarquia absoluta (que é o caso do reinado de Dom João VI) eram raros os casos de corrupção. Já hoje...

3º) Diferente foi - por exemplo - o reinado de Dom Pedro II (durou 49 anos) foi um reinado muito longo, muito equilibrado. Como pessoa, ele era muito equilibrado, muito ponderado, muito culto, e o Brasil recém independente, cheio de problemas herdados da colônia viveu um Estado de direito, com uma constituição que nunca foi violada, o que só viria a acontecer com o golpe militar de 15 de novembro de 1889, que nos impôs o regime republicano;

4º)recentemente o insuspeito historiador José Murilo de Carvalho (professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, integrante da Academia Brasileira de Letras e da Academia Brasileira de Ciências, autor do recente livro "Os Bestializados") AFIRMOU:
"Eu sou um republicano radical, no que diz respeito a valores. Mas, em termos de governantes, Dom Pedro II foi um exemplo de governante com enorme espírito público, com uma preocupação de agir corretamente, de respeitar o dinheiro público e até de doar parte de seus vencimentos, em vez de aumentá-los. A elite do Império tinha mais ou menos 500 pessoas, entre ministros, deputados e senadores.A liberdade de imprensa em seu reinado também foi extraordinária. Por isso, disse que ele tinha um espírito republicano. A elite política do Império, até pela ação de dom Pedro, que fiscalizava de perto todas as nomeações de funcionários, tinha também um padrão de comportamento ético alto";

5º) Para não me alongar,permita-me apenas acrescentar que um rei é educado desde criança para reinar com honestidade, competência e nobreza, e durante toda a vida acompanha os problemas do país e colabora em sua solução, com independência política e partidária. Tente lembrar uma denúncia recente (pelo menos com referência a nossa faixa etária) de alguma denúncia de corrupção contra um rei. Já em relação aos presidentes de república...

Cordialmente, velho admirador,
Armando

José do Vale Pinheiro Feitosa disse...

Armando: a fé é um dom até o limite em que a esperança se torna véu que esconde a ruptura. Shakespeare é pródigo em cascavilhar os dramas de traições, ganâncias, assassinatos, roubos, saques das famílias reais a um ponto tal que se tornaram dramas fundamentais da alma humana. Nem no absolutismo nem no parlamentarismo real houve um interesse efetivamente universal das cortes européias. Os conflitos que antecederam a revolução francesa tinham uma estrutura baseada nas classes rurais (especialmente a igreja francesa), mas o maior exemplo que originava a propaganda revolucionária acontecia em Varsalhes entre seus comensais. Ou seja a tese da monarquia não pode ser defendida pelo belo estilo ou pela educação refinada dos membros. Isso é negar papéis como o de Bonifácio e dos regentes, especialmente Feijó. Aliás antes de Pedro II assumir, teve-se que constituir o novo país e enfrentar quatro levantes provinciais:cabanagem, sabinada, balaiada, farroupilha. O imperador assume com parte dos problemas internos consolidados, uma nova ordem mundial comandada pelos Ingleses, a famosa Pax Britânica. Ao se falar da segunda monarquia brasileira, pode-se, a gosto, incensar o imperador, mas não se pode esquecer a história do mundo real.

Armando Rafael disse...

E já que o assunto é corrupção:

Pesquisa
Para 54%, a corrupção 'aumentou muito'
29 de Agosto de 2008

Para a maioria da população brasileira, a corrupção no país aumentou muito nos últimos cinco anos. Essa é a opinião de 54% dos entrevistados em uma pesquisa revelada nesta sexta-feira pelo portal UOL. Encomendada pela Universidade Federal de Minas Gerais ao instituto Vox Populi, a sondagem mostra ainda que só 1% da população do Brasil acha que a prática "diminuiu muito" desde 2003. Para 7%, ela diminuiu um pouco. Outros 19% dizem que a corrupção aumentou um pouco, e 16%, que não mudou.

A pesquisa ouviu 2.421 pessoas entre os dias 10 e 16 de maio deste ano. Na opinião de 77% dos entrevistados, a corrupção é um problema "muito grave" no país; para um grupo de 20%, é "grave"; e para só 2%, é "pouco grave". Em relação ao combate aos corruptos, a Polícia Federal tem a melhor reputação entre os brasileiros. Para 86%, a PF ajuda no combate à prática de desvios. Só 11% acham que não. Já as ações do Legislativo são positivas na opinião de 81%. Para 68%, o Judiciário contribui na tarefa.

Sobre o papel do governo Lula, a sondagem pediu aos entrevistados que escolhessem uma das frases que mais refletiam sua opinião. Em 75% dos casos, a frase indicada como mais correta foi "O que aumentou não foi a corrupção, mas a apuração dos casos escondidos". Já em 17% dos casos, a frase mais adequada foi "Durante o governo Lula houve grande aumento da corrupção no país". Não concordaram com nenhuma das duas 4% dos entrevistados. Outros 4% não souberam ou não quiseram responder.

Prejuízo - De acordo com a Controladoria-Geral da União, os cofres públicos deveriam ser ressarcidos em pelo menos 3,3 bilhões de reais desviados entre 2001 e 2008. A conta resulta dos cerca de 12.000 processos abertos na CGU para apurar casos de desvio de dinheiro público. Desses 12.000, 9.000 já foram encaminhados ao Tribunal de Contas da União e esperam julgamento. Um estudo da Fiesp diz que a economia do país perde cerca de 10,5 bilhões de reais por ano em função da prática de corrupção.