TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

quinta-feira, 27 de março de 2008

Pelas lentes de Fellini: 1964

Eu tinha doze anos em 31 de março de 1964. As lembranças que tanto marcaram minha geração não possuem o romantismo de Casimiro de Abreu. Para mim, são imagens aleatórias como as do filme Amarcord, de Federico Fellini. Tanto na cidadezinha italiana de Rimini, como no Crato, dois meninos assistiram ao espetáculo do fascismo, sem compreender o que se passava. Em Rimini, os sinos da igreja tocavam pela chegada da primavera e pela visita de Mussolini. Na minha cidade, mandaram tocar os sinos em louvor ao golpe militar, que bania o perigo do comunismo ateu. E mais tarde, Igreja e Prefeitura ofereceram um banquete das arábias na visita de Castelo Branco, o cearense ditador.

No dia 13 de março, meu pai ouvira o comício da Central do Brasil, num velho rádio Philips que antes funcionava a bateria. Lembro os discursos de Arraes, Brizola e João Goulart, pois o rádio ficava junto de minha rede, e eu não conseguia dormir com o barulho. Achei a voz de Brizola parecida com a dos profetas de Juazeiro do Padrinho Cícero. Os personagens da cena política brasileira não significavam quase nada para mim, mais ocupado com os banhos nas nascentes do Cariri, o cinema e as revistas em quadrinho. Minha mãe sempre temerosa de tudo acendia velas para Nossa Senhora Aparecida, uma santa de porcelana que ganhei de uma tia, quando fiz a primeira comunhão.

Meu pai, um udenista fervoroso, votara em Jânio Quadros para presidente, e durante a campanha política usava uma vassourinha dourada, presa ao bolso da camisa. Tomou um porre no dia em que saiu o resultado da eleição. Foi a primeira vez que eu o vi embriagado. Minha mãe, como todas as esposas da época, votava com o marido e estava mais preocupada com a administração da casa, de sete filhos, um irmão solteiro, dois sobrinhos e três empregadas, todos sustentados por meu pai.

Prenderam nosso vizinho Dedé Alencar. Ele botou na vitrola um disco da campanha de Miguel Arraes e deixou que tocasse o dia inteiro. Falaram que era comunista, mas nunca foi. Vivia ocupado com o comércio de farinha de mandioca, num armazém perto da estação do trem. Foi solto no começo da noite. A mesma sorte não teve um bancário de nossa rua. Levaram o rapaz de manhãzinha, quando passávamos pro colégio. A esposa perguntava aos curiosos se nunca tinham visto um homem sendo preso.

Havia muito alvoroço em torno da casa de D. Benigna, mãe de Miguel Arraes, uma casa sertaneja de portas sempre abertas, onde todos eram bem recebidos, proseavam e enchiam a barriga. As irmãs do governador de Pernambuco cantavam no coro da igreja de São Vicente, onde eu assistia missa. Dona Anilda, a mais velha, foi minha professora de francês e um dia me passou uma reprimenda porque falei que o hino do Brasil era mais bonito que a Marselhesa.

Pairava sobre as pessoas mais interessantes do Crato a suspeita de serem comunistas. Ninguém falava com elas, pois era perigoso. Igualzinho ao tempo da epidemia de peste bubônica na cidade. Prendiam os suspeitos da doença, levavam para um hospital e de lá eles nunca retornavam. Nem sei que fim levou os jogadores de gamão e seus copos de conhaque. E o revendedor de cigarros, o dono da sapataria com um palito entre os dentes, duas professoras gaúchas e um padre que ensinava história?

Nós meninos, para quem as notícias tardavam nos jornais do cinema, compreendíamos vagamente a revolução. Havia as novelas de rádio, doutrinárias contra o comunismo; havia a "Aliança para o Progresso", que mandava alimentos e roupas usadas dos americanos para os pobres; e havia a sonhada visita ao Brasil de John Kennedy e sua esposa Jacqueline.

Só em 1968 pude enxergar de perto o lado truculento de 64. As lentes da câmera se modificaram e fotografei estudantes sendo trucidados e jogados dentro de camburões, em Fortaleza. Em 1970, quando estudava medicina no Recife, nosso professor de anatomia ameaçou-nos com o Quarto Exército. Tentava nos manter submissos com o terror. Mas essas já são outras lembranças, bem pouco fellinianas.


Ronaldo Correia de Brito é médico e escritor. Escreveu Faca e Livro dos Homens.

Fale com Ronaldo Correia de Brito: ronaldo_correia@terra.com.br

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