TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

quinta-feira, 30 de agosto de 2007

Esculpindo a si mesmo


Da Série: OS FILÓSOFOS DA BATATEIRA







Mitonho, chupando um rolete de cana, aproxima-se da sombra do pé de cajá. Nela estão Chambaril, João de Barros e Chico Preto. Atrás do grupo o curral de vacas leiteira, com seu único touro holandês com toda a rabugice que lhe é própria.

Sete horas da manhã. Um vento frio vindo do leste através do leito seco do rio batateira dita o ambiente dos dias de meio de ano. O corte de cana já vai adiantado. Os engenhos de rapadura que restam, já trabalham desde a madrugada. Mas os quatro amigos, na falta do que mais fazer, filosofam.

Qual a questão?

Mitonho, apesar de saborear o doce da cana, trazia uma questão um tanto quanto ácida. Vira na revista uma figura em que uma mulher, parecida com uma escultura de pedra, esculpia a si mesma, revelando já, algumas estampas do seu corpo carnal. E sem saber qual motivo o incomodava, trouxera a questão filosófica assim mesmo: um incômodo.

Chambaril não acordara mesmo de bom humor, estava qual o touro do curral e repreendeu o amigo.
- Mais é de lascar mesmo. Onde já se viu trazer uma questão desse modo. Uma foto de revista e um incomodado que não sabe bem porque?

- Num é mermo? Se fosse uma miséria de fome ou de guerra? Se fosse uma maldade de ladrão, se fosse um desastre, mas uma foto de mulher? – João de Barros queria matar o tema de Mitonho logo na nascedouro.


- Mas a mulher mete o martelo na pedra e quem aparece na escultura é ela mesma. Eu nunca tinha pensado nisso. O artista nunca poderia fazer a ele mesmo, ele só faz a imitação. Ninguém faz você mesmo.


- Nem os outros abestado! O mais maior dos escultores só consegue é imitação mesmo e daí tu num trouxe novidade nenhuma. Quem num sabe que a arte só imita? – João de Barros emendou o argumento de Mitonho.

O assunto sofreu um choque de realidade. Os quatro pararam a discussão imediatamente. Socorro, com os cabelos até a cintura, uma roupa de chita quase transparente, passeava no éter como a germinação do planeta. Decantava os ferormônios dos adolescentes num só recipiente. Era o corpo ajuntado do vento, da terra, água e do ar. Era a brincadeira da terra em modos diferentes. Por vezes um passarinho e noutras um fruto cheiroso de cajá. Neste embalo Chico Preto achou o tema de Mitonho.


- Socorro além desta paixão é gente como nós. É sofrimento, é alegria, é abraço aos elementos do mundo e é choro da falta de apenas um deles.Socorro é como esta história de Mitonho. É uma promessa a acontecer, é uma acontecer a prometer.


- Socorro num é de pedra. É carrapeta da natureza, ontem era diferente e amanhã mais ainda de ontem e de hoje. – João de Barros interpretou Chico.


- É verdade ninguém esculpi a si mesmo. A estátua nunca é a mesma. No entanto, uma sombra de igualdade fica acompanhando a pessoa como um anjo da guarda. É justamente esta igualdade que o autor desta fotografia queria achar. Mas não ache ele que as pessoas são escultura final, nunca elas estarão acabadas. Todo tempo ajunta algo e leva um tanto também. Afinal ao tentar nos esculpir a nós próprios sempre há enorme assistência em volta. Nunca somos o artista isolado e guardado até que a obra fique no ponto. A nossa obra é sugerida pelo mundo em volta.



E Mitonho, satisfeito com a manhã, descascou mais duas canas e os quatro ficaram adocicando o tempo a espera de Socorro. Que voltasse carregando a lata d´água na cabeça. Todos na esperança que o transbordo da água caísse no tecido da roupa dela. A água revelasse o que Lady Godiva escondeu sob os cabelos como igual eram aos de Socorro.

3 comentários:

socorro moreira disse...

Ri sem piedade do nome do teu personagem feminino: Socorro!
Ceará, Pernambuco, Piauí e Paraiba...metade das mulheres, que nasceram nos anos 50...é Socorro! Claro que questionei minha mãe,chegando até a cobrar:Mas mulher, porque meu nome não é Mônica...se nasci no dia 27 de agôsto?
Ela até gagueja, quando explica! Ô minha filha, sofri tanto pra você nascer(três dias e três noites)!
Fiz promessas com São Raimundo Nonato, para ter um parto feliz...E, se fosse menino, seu nome seria Nonato! Aí nasceu uma menina...Ela nem duas vezes pensou...Nossa Sra do Perpétuo do Socorro é a santa da devoção de São Raimundo...Para agradá-lo, minha minha primeira filha é Socorro!
Meu padrinho escolhido foi um amigo muito querido da minha mãe: Vicente Feitosa, irmão de Zé do Vale.E sabe o que ganhei, no dia do meu primeiro aniversário? Uma imagem linda de Nossa Sra do Perpétuo do Socorro.Ela tem olhinhos de vidro castanho bem escuro...É belíssima! Naquele tempo, a Livraria Católica de Zé do Vale e Vieirinha ,vendia artigos religiosos, via Sampa. No meu segundo aniversário, meu padrinho presenteou-me com uma imagem de São Raimundo Nonato.Quando a encomenda chegou, ele havia falecido prematuramente, justo no dia em que seria celebrado o seu casamento com a minha madrinha Eurídice( uma moça de Araripina).Mas, Zé do Vale chamou a minha mãe, e entregou-lhe a minha herança.
Em toda minha infância, visitei com a minha madrinha e a minha mãe,uma casa linda na Batateira.O muro coberto de trepadeira rosa;paredes brancas, e portas azuis...Inesquecível! Acho que na casa tinha um pé de cajá, no quintal...Lá moravam pessoas humanas, amigas e doces... como Dona Leonarda, Seu Fernando, Dona Gisélia ...
Você conhece esse povo? (sorrindo)
Bom...já passou a raiva de ser "Socorro".Hoje até gosto...É meu signo!

José do Vale Pinheiro Feitosa disse...

Venho de muito teimando com a idéia que tudo que sou é um estoque de tempo. Mas não é teimosia sem causa. É teimosia de uma coisa maior que vida nos vai acrescentando. A vida não é um estoque de tempo que se finda, ao contrário, ela é uma ajuntada que cresce. E ajuntada é variada como uma floresta. Pode ser um minúsculo ou um maísculo. Pode ser um multiplicador ou um divisor. È tanta coisa, mas principalmente gente, gente que nunca mais vi, gente que penso que mora em mim, gente que está aqui ao meu lado. Isso é que é vida boa.

socorro moreira disse...

Fomos contemporâneos no Colégio Estadual...Segundo ano científico, em classes diferentes.
Você era da turma de Leni Cariolando,Nildo Cassundé, Josimar Leonel, Marcondes... dos veteranos! Eu era vizinha, e novata!
Sempre nos vimos...nunca conversamos! Isso nem chega a ser estranho...Estranhos nunca fomos.Gente da mesma cidade, da mesma geração, parentes por afinidades(Pinheiro...talvez!) É claro que tínhamos encontros marcados.Inconscientemente...sem nenhuma pressa! E haja faltas! Mas, se a nossa história tem tanto ponto de intersecção é porque somos hachurados, no diagrama da vida!