TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

quarta-feira, 29 de agosto de 2007

BLOWUP - Leminsky !


O poeta da estranheza

Por Pedro Maciel

“o pauloleminski/ é um cachorro louco/ que deve ser morto/ a pau a pedra/ a fogo a pique/ senão é bem capaz/ o fdp/ de fazer chover/ em nosso piquenique”. Esse texto do poeta curitibano traduz um pouco a vida que levou Leminski (1945-1989). Bebeu em todas as fontes. Escreveu ensaios, letras de música, traduziu Bashô e Homero, exerceu o jornalismo, viveu nos tempos das liberações. Polêmico e inovador. Um autor que se perguntava para que servem os poetas?

Leminski e Ana Cristina César são os dois mais importantes poetas da geração de 70. Geração marginal. Aliás, a maioria dos poetas da geração 70, descobertos pela ensaísta Heloísa Buarque de Hollanda, não é de bons artesãos, não domina o instrumento e não sabe do que se trata o passado e por isso não levam adiante “o que estava jóia”. São apenas ignorantes, pensava Leminski.

No artigo “Tudo, de novo”, Folha de São Paulo (março de 1983), o poeta anota que “uma das grandes novidades é que o poema ficou portátil. Leve de carregar. Grafitável, numa palavra. Nisso, puxou por vários dos seus avós: Blaise Cendrars, Oswald de Andrade, antropólogos em geral. Ou aquele Drummond angloautomobilístico dos anos 30: Stop./ A vida parou. Ou foi o automóvel?”.

Leminski era como o Fausto de Goethe. Preferiu viver como um estranho. O ex-estranho, Editora Iluminuras, é o título da última coletânea de poemas inéditos. Ainda falta publicar contos, ensaios e uma novela. O poeta multimídia era um estranho em sua própria terra. Um estrangeiro. Um homem do mundo morando no interior do Brasil. No poema o ex-estranho um breve auto-retrato: “passageiro solitário/ o coração como alvo/ sempre o mesmo, ora vário/ aponta a seta, Sagitário/ para o centro da galáxia.”

Leminski esteve no mundo em busca de aventura. O que importava era ter a vida na mão. Saber de cor e salteado os truques pra se levar a vida. Essa vida tão falada e banal. Mas Leminski queria a vida também escrita. Reescritura de vida. Reescreveu as lendas e ecos dos emigrantes poloneses do sul brasileiro. Incorporou a voz sofrida e cantada do povo negro da África. Desta miscigenação nasceu a poesia de Paulo Leminski. Poesia que a gente encontra em toda parte.

Talvez o livro mais impressionante de Leminski seja o Catatau. Texto fragmentado, tendente ao barroco. Fala a língua de James Joyce e Guimarães Rosa. É um rosário de preces contemporâneas do francês René Descartes. O poeta imagina a vinda do filósofo ao Brasil durante o período das invasões holandesas. No livro o filósofo é chamado de Renatus Cartesius e mora na Recife do século XVII. O livro não tem roteiro ou enredo. É uma fábula exemplar. Um livro sem estilo.

Leminski à maneira borgiana recriou muitas fábulas. Reescreveu o mundo que poderia ter sido e não foi. Reinventou o texto para contextualizar, contestar, protestar. O texto de Leminski é quase sempre um protesto. Um pré-texto. Texto que mais parece uma “proesia” sonora, segundo o poeta Carlos Ávila, “cheia de invenções léxicas trabalhadas artesanalmente no melhor sentido joyceano-macarrônico, procurando dar continuidade às conquistas de Oswald, Rosa e Haroldo de Campos, indo muito além dos contistas e romancistas em cena atualmente no Brasil”.

Leminski era um poeta que viveu praticamente à margem em nossos tempos pós-modernos. Poeta de um rigor sintético admirável e ao mesmo tempo caprichoso e relaxado. O poeta que mais se aproxima de Torquato Neto. O Nosferatu. Poeta popular, pop, para tocar no rádio. Leminski homenageou Torquato num belo poema: “Coroas para Torquato/ um dia as fórmulas fracassam/ a atração dos corpos cessou/ as almas não combinam/ esferas se rebelam contra a lei das superfícies/ quadrados se abrem/ dos eixos/ sai a perfeição das coisas feitas nas coxas/ abaixo o senso de proporções/ pertenço ao número/ dos que viveram uma época excessiva”.

Romântico e utópico: ”Vai vir um dia/ quando tudo o que eu diga/ seja poesia”. Leminski era também um poeta com consciência intersemiótica. Vivia com a cabeça ligada no planeta e os pés plantados na terra de nascimento: “Um dia/ a gente ia ser homero/ a obra nada menos que uma iliada/ depois/ a barra pesando/ dava pra ser aí um rimbaud/ um ungaretti um fernando pessoa qualquer/ um lorca um éluard um ginsberg/ por fim/ acabamos o pequeno poeta de província/ que sempre fomos/ por trás de tantas máscaras/ que o tempo tratou como as flores”.




Poemas do livro “O ex-estranho”, Paulo Leminiski


INVERNÁCULO
(3)



Esta língua não é minha,

Qualquer um percebe.

Quando o sentido caminha,

A palavra permanece.

Quem sabe mal digo mentiras,

Vai ver que só minto verdades.

Assim me falo, eu, mínima,

quem sabe, eu sinto, mal sabe.

Esta não é minha língua.

A língua que eu falo trava

uma canção longíngua,

a voz, além, nem palavra.

O dialeto que se usa

à margem esquerda da frase,

eis a fala que me lusa,

eu, meio, eu dentro, eu, quase.



Já disse de nós.

Já disse de mim.

Já disse do mundo.

Já disse agora,

Eu que já disse nunca.

Todo mundo sabe,

eu já disse muito.



Tenho a impressão

que já disse tudo.

E tudo já foi tão de repente.




desastre de uma idéia

só o durante dura

aquilo que o dia adianta adia



estranhas formas assume a vida

quando eu como tudo que me convida

e coisas alguma me sacia



formas estranhas assume a fome

quando o dia é desordem,

e meu sonho dorme



fome da china fome da índia

fome que ainda não tomou cor

essa fúria que quer

seja lá o que flor




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RIMO E RIMOS

Passarinho parnasiano,

nunca rimo tanto como faz.

Rimo logo ando com quando,

mirando menos com mais.

Rimo, rimo, miras, rimos,

como se todos rimássemos,

como se todos nós ríssemos,

se amar fosse fácil.



Perguntaram por que rimo tanto,

responder que rima é coisa rara.

O raro, rarefeitamente, pára,

como pára, sem raiva,qualquer canto.

Rimar é parar, parar para ver e escutar

Remexer lá no fundo do búzio

aquele murmúrio inconcluso,

Pompéia, idéia, Vesúvio,

o mar que só fala do mar.



Vida, coisa para ser dita,

como é dita este fado que me mata.

Mal o digo e já meu dito se conflita

com toda a cisma que, maldita, me maltrata.



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leite, leitura,

letras, literatura,

tudo o que passa,

tudo o que dura

tudo o que duramente passa

tudo o que passageiramente dura

tudo, tudo, tudo,

não passa de caricatura

de você, minha amargura

de ver que viver não tem cura


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Trevas.

Que mais pode ler

um poeta que se preza?



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depois de muito meditar

resolvi editar

tudo o que o coração

me ditar

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Poemas do livro “Caprichos & Relaxos”, Paulo Leminski

eu

quando olho nos olhos

sei quando uma pessoa

está por dentro

ou está por fora


quem está por fora

não segura

um olhar que demora


de dentro do meu centro

este poema me olha


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parar de escrever

bilhetes de felicitações

como seu eu fosse camões

e as ilíadas dos meus dias

fossem lusíadas,

rosas, vieiras, sermões


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Poemas do livro “Polonaises”, Paulo Leminiski
um poema

que não se entende

é digno de nota


a dignidade suprema

de um navio

perdendo a rota

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para a liberdade e luta


me enterrem com os trotskistas

na cova comum dos idealistas

onde jazem aqueles

que o poder não corrompeu



me enterrem com meu coração

na beira do rio

onde o joelho ferido

tocou a pedra da paixão

__
____________________________________


lembrem de mim

como um

que ouvia a chuva

como quem assiste missa

como quem hesita, mestiça,

entre a pressa e a preguiça

______________________________________

Poemas do livro “Não fosse isso e era menos não fosse tanto e era quase”, Paulo Leminski

apagar-me

diluir-me

desmanchar-me

até que depois

de mim

de nós

de tudo

não reste mais

que o charme
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entro e saio



dentro

é só ensaio

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não discuto

com o destino



o que pintar

eu assino

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confira



tudo que respira

conspira
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parem

eu confesso

sou poeta



cada manhã que nasce

me nasce

uma rosa na face



parem

eu confesso

sou poeta



só meu amor é meu deus



eu sou o seu profeta


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Poemas do livro “Ideolágrimas”, Paulo Leminski


na rua

sem resistir



me chamam



torno a existir


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esquentar numa fogueira

o frio que sinto

ao contemplar estrelas?


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cabelos que me caem

em cada um

mil anos de hailkai


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Poemas do livro “SOL-TE”, Paulo Leminski



nem toda hora

é obra

nem toda obra

é prima

algumas são mães

outras irmãs
algumas
clima



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se

nem

for

terra



se

trans

for

mar


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Dois poemas publicados em jornais




M, DE MEMÓRIA


Os livros sabem de cor

Milhares de poemas.

Que memória!

Lembrar, assim, vale a pena.



Vale a pena o desperdício,

Ulisses voltou de Tróia,

assim como Dante disse,

o céu não vale uma história.



Um dia, o diabo veio

seduzir um doutor Fausto.

Byron era verdadeiro.

Fernando, pessoa, era falso.



Mallarmé era tão pálido,

mais parecia uma página.

Rimbaud se mandou pra África,

Hemingway de miragens.



Os livros sabem de tudo.

Já sabem deste dilema.

Só não sabem que, no fundo,

ler não passa de uma lenda.



PLENA PAUSA




Lugar onde se faz

o que já foi feito,

branco da página,

soma de todos os textos,

foi-se o tempo

quando, escrevendo,

era preciso

uma folha isenta.



Nenhuma página

jamais foi limpa.

Mesmo a mais Saara,

ártica,significa.

Nunca houve isso,

uma página em branco.

No fundo, todos gritam,

pálidas de tanto.


____________________________


5 Poemas de Bashô traduzidos por Paulo Leminski


acende a luz de leve

eu lhe mostro uma beleza

a bola de neve





do orvalho

nunca esqueça

o branco gosto solitário


o mar escurece

a voz das gaivotas

quase branca


casca oca

a cigarra

cantou-se toda





velha lagoa

o sapo salta

o som da água






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Carta de Paulo Leminski para Régis Bonvicino; do livro "Uma carta uma brasa através”

(1976-1981)





out / 77


EPÍSTOLA A RÉGIS



Paulo, pequeno irmão,

da pequena cidade de Curitiba,

ilha de certeza

cercada de pequenos problemas por todos os lados,

a Régis, grande irmão,

na grande cidade de São Paulo,

cercado por um grande problema



.....................................





pare de se lamentar

como uma velha carpideira siciliana



esse teu medo de ter secado tua fonte de poesia

é apenas para nos deixar preocupados



eu já te disse

PARA SER POETA

TEM QUE SER MAIS QUE POETA





v. tem que ser um monte de outras coisas mais

senão daonde?

v. vai acabar fazendo literatura de literatura

v. tem que esculhambar mais

pintar por fora das molduras

EXISTENCIALMENTE


esculhambe-se vire-se altere dê alteração

considere a possibilidade de ir pro Japão

rejeite o projeto de felicidade

q a sociedade te propõe



eu sei

você é paulista

mas ser paulista não é tudo



rompa



fique mais irregular



seja mais inconveniente



é a linguagem que está a serviço da vida

não a vida a serviço da linguagem



a linguagem vem

sai na urina

acontece



fazer poemas não é a coisa mais importante

mas para quem faz é

e tem que ser assim



o signo é nosso destino

nossa desgraça e nossa glória



uma aranha sempre sabe

que depois desta teia

virá outra teia e outra teia e outra



uma aranha não duvida



v. vê

não há pressa: Mallarmé deixou meiadúzia de coisas

augusto idem

não se importe com q a freqüência/ a fecundidade

/a abundância

uma década pode esperar um bom poema




[Publicado no caderno “Idéias/Livros”, Jornal do Brasil, 07 de dezembro de 1996]

Pedro Maciel é autor do romance “A Hora dos Náufragos”, Ed. Bertrand Brasil.
E-mail: pedro_maciel@uol.com.br

2 comentários:

José do Vale Pinheiro Feitosa disse...

Vou contar uma coisa. Outro dia passei dois dias no Crato. Cheguei numa tarde, fui para um hotel que fica no caminho do granjeiro, por volta de 15:30 horas. A encosta da serra estava verde, cheia de passarinhos e flores na pastagem. Desde a piscina do hotel, fiquei em flash back com cada sibite, anun preto, cada flor, o mundo que havia nas profundezas da memória estava vivo como sempre à minha frente. À noite, solitário, um pouco angustiado de não ter ninguém aonde sempre tivera milhares, fui para a cidade num taxi. Pretendia comer um bife no Nenen, mas não tinha dinheiro vivo e tive que ir ao BB. Aí resolvi andar pelo centro da cidade: uma profunda experiência de desencarnação. Eram os mesmos prédios da mesma cidade, mas o conteúdo era outro. As famílias não moravam mais no centro, as praças estavam escuras e abandonadas. Fui para a Palhoça. Serviço ruim, um peito de frango solado e ninguém que reconhecesse. Quanta saudade do Alagoano. Finalmente na praça da Sé muita gente bebendo e alguns jovens se exibindo nas suas camionetes. Voltei para o hotel de mototáxi pois carrotáxi não havia. Desolado e abandonado no zapeamento do controle remoto de uma TV do hotel. No dia seguinte procurei alguém com quem conversar na noite seguinte. Salvaram-me Zé Flávio e Marcos Cunha. Enquanto procurava mobilizar o Zè, Marcos Nunes, cardiologista, desanimou-me: não atende telefone e não sai na noite. Agora sei o que anda fazendo além do gostosíssimo papo que temos o prêmio se é de fato difícil encontrá-lo.

Dihelson Mendonça disse...

O Zé Flávio é muito difícil de encontrar. O "homi" é um caso sério. É o único médico a quem eu me consulto, sem que ele me veja, pois eu mando apenas um bilhete dizendo o que to sentindo e ele me manda a receita dos remédios, rs rs rs.

Grande Zé!
E Marcos Cunha, esse ninguém consegue nem ver...

Um grande abraço!